Teoria da Empresa

Contexto Histรณrico e Origem da Teoria da Empresa

  • Evoluรงรฃo Histรณrica do Direito Comercial: O direito comercial percorreu etapas marcantes:
    • Perรญodo subjetivo clรกssico: amparado nas corporaรงรตes de ofรญcio, em que o critรฉrio para aplicaรงรฃo do direito comercial era a matrรญcula do indivรญduo nessas corporaรงรตes.
    • Perรญodo objetivo pรณs-napoleรดnico: centrado na prรกtica habitual de atos de comรฉrcio, sem a exigรชncia da corporaรงรฃo. Em 1942, jรก no contexto da Segunda Guerra Mundial, a Itรกlia, em pleno desenvolvimento de seu Cรณdigo Civil, recebe a proposta de Aschini, que introduz a Teoria da Empresa, deslocando o foco do sujeito para a atividade.
  • Contribuiรงรฃo de Alberto Asquini: Asquini nรฃo criou algo completamente novo, mas sistematizou uma realidade que jรก existia. Ao observar a evoluรงรฃo legislativa, percebeu-se que tanto a visรฃo centrada na pessoa do comerciante (perรญodo subjetivo) quanto a visรฃo centrada nos atos de comรฉrcio (perรญodo objetivo) jรก nรฃo eram suficientes. Era necessรกrio pensar alรฉm, valorizando a atividade econรดmica organizada e reconhecendo o papel social da circulaรงรฃo de bens e serviรงos.

A Virada Conceitual: Da Centralidade do Sujeito ร  Centralidade da Atividade

  • Do โ€œQuemโ€ ao โ€œO quรชโ€: Antes da Teoria da Empresa, o direito comercial dependia de um sujeito previamente qualificado โ€“ seja matriculado em corporaรงรฃo de ofรญcio, seja reconhecido pela prรกtica habitual de comรฉrcio. Com Aschini, a atividade organizada ganha importรขncia. O foco passa a ser a produรงรฃo ou circulaรงรฃo de bens e serviรงos, consolidando a ideia de que a sociedade como um todo se beneficia dessa atividade econรดmica.
  • Artigo 966 do Cรณdigo Civil Brasileiro: O art. 966 do Cรณdigo Civil brasileiro (Lei nยบ 10.406/2002) incorporou a lรณgica da Teoria da Empresa ao definir empresรกrio como aquele que โ€œexerce profissionalmente atividade econรดmica organizada para a produรงรฃo ou circulaรงรฃo de bens ou serviรงosโ€. Essa redaรงรฃo consagra a visรฃo aschiniana, na medida em que:
    • Empresรกrio: Sujeito que organiza profissionalmente a atividade.
    • Empresa: A atividade econรดmica organizada em si.

O Papel do Empresรกrio e a Natureza da Empresa

  • Sujeito Essencial, mas Nรฃo Permanente: O empresรกrio รฉ fundamental porque sem ele nรฃo hรก a estruturaรงรฃo inicial da empresa. Entretanto, apรณs implantada, a atividade (empresa) pode continuar existindo ainda que o empresรกrio se afaste. Isto configura um sistema subjetivo moderno:
    • ร‰ subjetivo porque a empresa nasce a partir da iniciativa de um sujeito.
    • ร‰ moderno porque a empresa pode sobreviver ao seu criador, mantendo o interesse coletivo e a funcionalidade do mercado.
  • A Empresa Nรฃo ร‰ Pessoa, ร‰ Atividade: A empresa nรฃo possui personalidade jurรญdica. ร‰ um conjunto de bens, meios de produรงรฃo e atividades coordenadas. Assim como um carro (objeto) depende de um motorista (sujeito), a empresa depende de um empresรกrio, mas a dรญvida e as obrigaรงรตes correm em nome do empresรกrio (pessoa natural ou jurรญdica), nรฃo da empresa. Dessa forma, a empresa รฉ um instrumento ou uma universalidade de fato. Ela pode ser adquirida, transferida, perpetuada, sem que isso implique necessariamente no fim das suas operaรงรตes.

Preservaรงรฃo da Empresa e Impactos Legislativos

  • A Perspectiva Histรณrica da Dissoluรงรฃo: Antes da Teoria da Empresa, a morte do empresรกrio equivalia ao fim da empresa. A lรณgica era simples: se o direito comercial dependia da existรชncia daquele sujeito matriculado ou praticante de atos de comรฉrcio, sua morte extinguia a atividade.
  • Ruptura com a Lรณgica da Dissoluรงรฃo Total: O direito empresarial moderno busca a preservaรงรฃo da empresa, o que se reflete nas normas processuais e civis:
    • Dissoluรงรฃo Parcial de Sociedade: A jurisprudรชncia e a doutrina brasileiras, antes da consagraรงรฃo legislativa, jรก buscavam soluรงรตes para preservar a atividade. Em vez de liquidar totalmente o negรณcio quando um sรณcio falecesse, passou-se a admitir a saรญda individual de sรณcios, mantendo-se a continuidade da sociedade.
    • CPC de 2015 (Lei nยบ 13.105/2015): Ao regulamentar a dissoluรงรฃo de sociedades, o novo Cรณdigo de Processo Civil prioriza a dissoluรงรฃo parcial, diferentemente do CPC de 1939, que tratava apenas da dissoluรงรฃo total. Dessa forma, o ordenamento incentiva que as empresas persistam, mesmo diante da saรญda ou morte de sรณcios.

Separando Empresรกrio e Empresa: Consequรชncias Prรกticas

  • Empresรกrio Individual e Sociedades Empresรกrias: No Brasil, o empresรกrio pode ser:
    • Pessoa natural: Conhecido como empresรกrio individual, responde de forma ilimitada pelas obrigaรงรตes da atividade.
    • Pessoa jurรญdica: Por meio de sociedades empresรกrias (por exemplo, sociedade limitada, sociedade anรดnima, entre outras), o empresรกrio pode ter responsabilidade limitada, assegurando maior proteรงรฃo ao patrimรดnio pessoal.
  • Fim da EIRELI: A antiga Empresa Individual de Responsabilidade Limitada (EIRELI), prevista no art. 980-A do Cรณdigo Civil, foi extinta pela Lei nยบ 14.195/2021, sendo convertida, de forma automรกtica, em Sociedade Limitada Unipessoal. Essa mudanรงa reforรงa a possibilidade de ter apenas um sรณcio titular da atividade, sem que isso implique na extinรงรฃo do negรณcio.
  • Distinรงรฃo Patrimonial (CPF e CNPJ): O empresรกrio individual possui um CNPJ para as operaรงรตes da empresa, embora seja pessoa natural, distinguindo o que รฉ patrimรดnio pessoal (CPF) do que รฉ parte do acervo da atividade (CNPJ). Isso facilita a gestรฃo, a tributaรงรฃo e a aquisiรงรฃo ou venda de bens vinculados ao negรณcio, conforme prevรช o art. 978 do Cรณdigo Civil que autoriza a alienaรงรฃo de bens do acervo empresarial sem outorga conjugal.

A Perpetuaรงรฃo da Empresa como Valor Coletivo

  • Interesse Pรบblico e Coletivo: A ideia central da Teoria da Empresa รฉ que a atividade econรดmica organizada beneficia nรฃo apenas o empresรกrio, mas a coletividade. Ao preservar empresas, a sociedade mantรฉm a circulaรงรฃo de bens e serviรงos, gera empregos, aprimora a qualidade e reduz custos, fortalecendo o tecido econรดmico.
  • Legado de Asquini: Ao propor a separaรงรฃo entre empresรกrio (sujeito) e empresa (atividade), Asquini deixou um legado conceitual: a empresa nรฃo morre com seu criador, nรฃo se extingue com a saรญda de um sรณcio, pode ser transmitida a herdeiros, terceiros ou atรฉ mesmo ser assumida temporariamente pelo Estado, se necessรกrio. Isso garante a sustentabilidade e a longevidade do mercado.

Perfis da Empresa

Conceito de Empresa e a Autonomia da Atividade

  • A ideia central รฉ que a empresa se caracteriza como uma atividade econรดmica organizada capaz de funcionar independentemente da presenรงa do seu titular.
  • Essa construรงรฃo teรณrica revela que o empresรกrio, embora seja imprescindรญvel para estruturar a atividade, nรฃo รฉ indispensรกvel para a sua continuidade.
  • Assim, a empresa consolida uma โ€œvida prรณpriaโ€, mantendo-se operante mesmo com a eventual saรญda, substituiรงรฃo ou morte do empresรกrio.

O Perfil Poliรฉdrico da Empresa (Teoria de Asquini)

  • Exemplos de Autonomia e Replicaรงรฃo da Estrutura Empresarial
    • Padarias, supermercados e demais comรฉrcios: Mesmo que o dono original se retire, a atividade continua, pois jรก hรก uma estrutura formada e pessoas treinadas.
    • Filiais: A abertura de uma filial nada mais รฉ do que reproduzir em outro local a mesma lรณgica de funcionamento implantada na matriz.
    • Franquias: Em uma franquia, terceiros utilizam o know-how, a marca, o treinamento e os padrรตes de funcionamento da empresa franqueadora, mantendo o mesmo padrรฃo de qualidade e organizaรงรฃo.

Debate Doutrinรกrio sobre o Perfil Corporativo

  • Alguns autores brasileiros questionam a existรชncia do perfil corporativo, entendendo que a interaรงรฃo com empregados, por exemplo, jรก estรก regulada pelo Direito do Trabalho, o que, para eles, afastaria a ideia de sinergia voluntรกria.
  • Outros sustentam que a sinergia รฉ mais ampla, abrangendo nรฃo apenas trabalhadores, mas toda a rede de relaรงรตes contratuais que envolve a empresa. Essa visรฃo reforรงa que a empresa se encaixa no mercado, interligando-se a fornecedores, consumidores, instituiรงรตes de crรฉdito, entre outros.

A Importรขncia do Encaixe no Mercado

  • Com o tempo, a empresa encontra seu lugar no mercado, estabelecendo relaรงรตes estรกveis e complementares com outros entes econรดmicos.
  • Esse โ€œencaixeโ€ no ambiente mercadolรณgico confere solidez e reduz a dependรชncia do negรณcio em relaรงรฃo ao empresรกrio, o que justifica a proteรงรฃo jurรญdica ร  empresa como uma unidade social e econรดmica relevante.

Empresa versus Atividade Intelectual (Art. 966 do Cรณdigo Civil)

  • O art. 966 do Cรณdigo Civil estabelece que nรฃo se considera empresรกrio aquele que exerce profissรฃo intelectual, de natureza cientรญfica, literรกria ou artรญstica, ainda que conte com auxiliares, salvo se a atividade intelectual constituir elemento de empresa.
  • Isso significa que se a atividade depende exclusivamente da criaรงรฃo pessoal do titular, desaparecendo com sua ausรชncia, nรฃo hรก empresa propriamente dita.
  • Caso o titular consiga estruturar um sistema autรดnomo, no qual terceiros tambรฉm criem ou reproduzam o objeto dessa atividade, o elemento intelectual pode se tornar apenas mais um entre diversos componentes da estrutura empresarial, afastando a exceรงรฃo e tornando a atividade empresarial.

Nรฃo Empresรกrio e o Empresรกrio Individual

Atividades Intelectuais nรฃo Empresariais

ร‰ importante entender que a atividade intelectual, de natureza cientรญfica, literรกria ou artรญstica, nรฃo configura empresarialidade quando depende inteiramente da presenรงa e do intelecto do profissional. Trata-se de situaรงรตes em que, retirando-se o titular, a atividade cessa, nรฃo subsistindo estrutura autossuficiente. Assim, o profissional intelectual puro nรฃo se submete ao direito empresarial, nรฃo necessita de registro na Junta Comercial, nรฃo estรก sujeito a falรชncia ou recuperaรงรฃo, sendo regulado pelo direito civil.

A Lรณgica da Empresarialidade

A essรชncia do empresรกrio reside na autossuficiรชncia da estrutura. Esse traรงo fundamental significa que a empresa, para ser considerada assim, precisa manter suas atividades de produรงรฃo e circulaรงรฃo de bens ou serviรงos independentemente da presenรงa do titular. A organizaรงรฃo empresarial permite a continuidade do negรณcio, mesmo na ausรชncia daquele que o idealizou. O critรฉrio รฉ simples: se sem o titular o empreendimento ainda funciona, hรก indรญcio de que estejamos diante de uma atividade empresarial.

Sociedades e Profissionais nรฃo Empresรกrios

Quando a atividade nรฃo alcanรงa autossuficiรชncia e continua dependente do esforรงo pessoal do indivรญduo, ela permanece no campo civil. Profissionais autรดnomos e liberais, sem estrutura empresarial, sรฃo nรฃo empresรกrios. Ao se unirem dois ou mais profissionais dessa natureza, temos a Sociedade Simples, figura regulada pelo direito civil, que nรฃo envolve registro na Junta Comercial e nรฃo se submete ร  falรชncia, aplicando-se o regime da insolvรชncia civil. Nesses casos, a responsabilidade dos sรณcios รฉ regulada livremente pelo contrato social, podendo-se adotar modalidades inspiradas em sociedades empresariais, exceto a sociedade anรดnima. Alรฉm disso, a cooperativa รฉ equiparada ร  Sociedade Simples, mantendo-se igualmente no campo civil.

Advocacia como Atividade nรฃo Empresarial

A advocacia constitui exemplo notรณrio de atividade nรฃo empresarial por expressa vedaรงรฃo legal. O artigo 16 da Lei 8.906/1994 (Estatuto da OAB) proรญbe o exercรญcio da advocacia em carรกter empresarial, impedindo, por exemplo, o registro em Junta Comercial, a configuraรงรฃo de sociedade empresรกria ou o acesso aos institutos da falรชncia e da recuperaรงรฃo. Ainda que o escritรณrio de advocacia seja grande e conte com diversos advogados, prevalece a previsรฃo legal que garante o tratamento civilista, conferindo aos advogados a condiรงรฃo de nรฃo empresรกrios.

Atividade Rural e Associaรงรฃo Futebolรญstica: Opรงรฃo pelo Regime Empresarial

A atividade rural e a associaรงรฃo futebolรญstica, nos termos do Cรณdigo Civil (artigos 971 e 984), nascem sob o regime civil. Entretanto, por opรงรฃo, podem se registrar na Junta Comercial, tornando-se empresรกrias. Ao fazerem esse registro, passam a se submeter ร s regras do direito empresarial e podem acessar, por exemplo, a recuperaรงรฃo judicial, desde que cumpridos os requisitos legais previstos na Lei de Falรชncias e Recuperaรงรฃo (Lei 11.101/2005). A jurisprudรชncia consolidada pelo STJ autoriza que o perรญodo de atividade anterior ao registro conte para o cรดmputo do prazo de dois anos exigido no artigo 48 dessa lei, desde que no momento do pedido haja registro na Junta Comercial e comprovaรงรฃo de atividade superior a dois anos.

Sociedade Simples e Flexibilidade na Responsabilidade

A Sociedade Simples estรก disciplinada do artigo 997 ao artigo 1038 do Cรณdigo Civil. Trata-se de um regime jurรญdico em que รฉ possรญvel pactuar a responsabilidade dos sรณcios conforme o contrato social, permitindo estabelecer responsabilidades limitadas ou ilimitadas, de forma individualizada ou coletiva. Ela serve ainda como regime geral para as sociedades de pessoas. Alรฉm disso, a integralizaรงรฃo do capital pode ocorrer por meio de serviรงos, nรฃo apenas com bens ou dinheiro, algo que a diferencia das sociedades empresรกrias. Essa liberdade no arranjo contratual possibilita grande versatilidade, mantendo-se, porรฉm, sempre no campo nรฃo empresarial, sem acesso a falรชncia ou recuperaรงรฃo, mas sujeita ร  insolvรชncia civil.

Empresรกrio Individual e MEI

O empresรกrio individual รฉ a pessoa natural que exerce a atividade econรดmica organizada para produรงรฃo ou circulaรงรฃo de bens ou serviรงos, com profissionalidade e objetivo de lucro, registrando-se na Junta Comercial. Por nรฃo existir distinรงรฃo entre a pessoa do empresรกrio e a empresa, a responsabilidade รฉ ilimitada, abrangendo todo o seu patrimรดnio. De forma anรกloga, o MEI (Microempreendedor Individual), em geral, nรฃo รฉ empresรกrio quando sua atividade cessa se o titular se ausentar. Contudo, caso contrate um empregado, cria-se uma estrutura mรญnima que permite o funcionamento do negรณcio sem o titular, convertendo-o em empresรกrio. Essa peculiaridade faz do MEI um caso especial, que pode evoluir de nรฃo empresรกrio a empresรกrio de pequeno porte, beneficiando-se de um tratamento jurรญdico diferenciado.

Extinรงรฃo da EIRELI

A EIRELI, outrora figura autรดnoma de empresรกrio individual com responsabilidade limitada, foi extinta e convertida em Sociedade Limitada Unipessoal. Com isso, o empresรกrio individual hoje se mantรฉm ou como pessoa natural empresรกria, ou, caso queira limitar a responsabilidade, constitui uma Sociedade Limitada Unipessoal, sem as caracterรญsticas da extinta EIRELI.

Diferenรงa entre Empresรกrio e Sรณcio de Sociedade Empresรกria

ร‰ preciso compreender que o empresรกrio, em sentido amplo, รฉ o titular da empresa. Se for pessoa natural, temos o empresรกrio individual; se for pessoa jurรญdica, temos a sociedade empresรกria. Jรก o sรณcio da sociedade empresรกria nรฃo รฉ, por si sรณ, o empresรกrio, mas integrante de uma entidade que exerce a atividade econรดmica empresarial. A personalidade empresarial รฉ da sociedade, nรฃo do sรณcio isolado.

Importรขncia do Registro e Regime Patrimonial

O registro tem papel definidor na natureza da atividade. Enquanto a sociedade simples se registra em cartรณrio de registro civil de pessoas jurรญdicas, a sociedade empresรกria se registra na Junta Comercial. O empresรกrio individual arquiva no registro pรบblico de empresas mercantis informaรงรตes sobre seu regime de bens, doaรงรตes, heranรงas e separaรงรตes, assegurando transparรชncia aos credores. A determinaรงรฃo do local de registro afeta profundamente o regime jurรญdico aplicรกvel, os riscos patrimoniais e o acesso a mecanismos legais como a recuperaรงรฃo judicial e a falรชncia.

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